No dia 7 de Julho de 1990, Cazuza morreu.
Ontem foi aniversário de minha mãe e eu cantarolava baixinho
“... Exagerado, jogado aos seus pés, eu sou mesmo exagerado...”

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As ondas dos cabelos se confundiam com as do mar, pois este batia braviamente contra a proa. O barqueiro carregava o leme em mãos de aço, enquanto o passageiro, náufrago de sentidos, viajava incólume à tempestade. O destino desconhecido, o caminho tortuoso, a partida esquecida. O que lhe ocorria era só aquela lembrança nebulosa de sentimentos, de névoa
também é o que nos leva.

Quero que de frente à minha tábua final, além de estar inscritos meu nome e minha pequena duração, se ponha ao seu pé, um cálice de lágrimas. Para poder conter e contar minha vida às rosas amarelas que irão me guardar.
(para Lilia)


· A visão de que um futuro professor universitário não deve ficar perdendo seu tempo, esforço e dinheiro tentando ser um professor do ensino médio público no Brasil.

1. Seria o pré-vestibular proibido para brancos carentes;
2. Seria o dito cujo proibido para negros ricos ou só ricos;
3. Seria o famigerado curso proibido para mulatos e pobres;
4. Seria que na porta do curso teria uma plaquinha escrita:
"-Só entre se você for negro e carente, se você não satisfaz estas exigências nem entre”.



- Foi boa, filha. Simples, mas boa. Brincava jogos simples pelas calçadas e ruas, com os moleques descalços e pés sujos de lama, moleques tão simples e tão moleques como eu.
- E meus avós?
- Seus avós também eram pessoas simples, mas de bom coração. Lembro de sua vó cozinhando o prato preferido de seu avô e de vez em quando ela gritava: “Menina sai da rua!”.
- E meu vô?
- Seu vô era pessoa séria, de poucas palavras e muitos olhares. Carinhoso e sisudo. Nenhum dos dois tiveram muitos estudos, mas sempre me perguntavam: “Já fez o dever de casa?”, “Deixa eu ver as notas do bimestre”.
- Eles eram severos?
- Não muito. Acho que consegui o que eles queriam. Consegui ter mais estudos do que eles. Me formei, depois me formei de novo e depois mais uma vez. Acho que consegui o que eles sempre esperaram de mim.
- Mamãe, o que você espera de mim?
- Espero que você seja uma boa pessoa, minha filha, uma pessoa de bem, que leia bons livros, que seja integra, carinhosa, boa filha para se tornar uma boa mãe, e que principalmente estude, estude e estude mais ainda, para que possa ser alguém na vida.
- Então você quer que eu faça tudo o que vovó queria que você fizesse?
- Não! Não é isso... não...
- Por quê?
- Quero que você siga seu próprio caminho!
- Hum. Tá bom.
- ... não sei. Só sei que sinto muito a falta deles. E todas as noites ainda lembro da minha infância, da cidade onde nasci e morei, que por sinal é bem longe daqui. Toda vez que lembro da rua, de casa, de papai e mamãe, lá no meu quarto, com seu pai ao meu lado, toda vez que lembro... [acabo chorando].
- Mamãe porque a gente ainda está andando de ônibus?
- Porque a vida não é tão fácil assim, por mais que tentemos fazer as coisas certas, filhota, sempre acabamos errando pelo caminho, deixando de fazer certas coisas, tomando outros rumos. Mas, hoje, você vive em melhores condições do que eu vivi! Posso te dar coisas que não tive.[Engraçado, mamãe também me dizia isso].
- Então acho que é isso mesmo que eu quero, mãe, quero estudar, ser uma webdesigner e publicitária, fazer um MBA na Fundação Getúlio Vargas, depois fazer meu mestrado e tentar um doutorado sanduwich em Londres com uma bolsa da CAPES ou do CNPq...
- É isso mesmo minha filha, este é o seu caminho, siga-o, faça-o.
- Mãe, será que eu serei uma pessoa feliz?
- Lógico minha filha, lógico...
-Você é feliz?
- Sim, sou sim. E sou feliz só porque tenho você. Mas porque também você tem um pai que te ama. Porque posso lembrar de minha infância, de meus amigos, de seus avós, e depois... [chorar]... e depois...sorrir!
- Mamãe. Eu te amo!
- Eu também te amo, minha menina.
- Mãe, a gente tem que puxar a “campanhia”, já é o nosso ponto.


Essa foi meu pai quem me contou.
Lá pelos idos da década de 70, o que mais se ouvia eram as grandes histórias ocorridas nos vagões dos trens que ligavam os subúrbios e a Baixada Fluminense ao centro da cidade do Rio de Janeiro, eram os trens da antiga Rede Ferroviária Federal.
Osmar era um mulato escuro, de cabelos sebosos, engomados com o primo pré-histórico do gel de hoje dia, a goma. Trabalhava na construção civil mas tinha um "quê" de malandro, usava roupas coloridas, e à noite vestia luvas pretas (era fã dos Panteras Negras). Tirava uma brasa nos bailes de black music, com aquelas pretas suadas que faziam passinhos marcados.
A única coisa que irritava Osmar era ter que pegar o trem lotado todos os dias, tão lotado que às vezes só tinha espaço para colocar um pé, se levantasse o outro, perdia o lugar.
- Olha o amendoim torradinho, olha o amendoim torradinho! – gritava o menino.
- Olha o picolé Dragão Chinês! Tem "Sem Nome" também – berrava outro guri.
- Sabe Tião, um dia eu vou ter um Chevettão só para não ter que pegar mais essa porcaria – resmungou Osmar.
- Que isso Osmar, para de reclamar de barriga cheia, fique satisfeito de ter uma condução baratinha pra gente poder chegar ao trabalho...
- Você se contenta com muito pouco – disse Osmar.
- Tu é que é muito metido – retrucou Tião.
- O que eu queria mesmo era poder pegar o trem em Japeri e ir sentado tirando um cochilo até a Central do Brasil.
Osmar pensava consigo: “Que merda de vida”.
Quando Osmar terminou de refletir seu sofrimento, e com o vagão já devidamente lotado, encostou-lhe um sujeito de quase dois metros, ficou coladinho, o homenzarrão era tão grande que sua axila (também conhecida como sovaco) ficou colada ao nariz do pobre do Osmar. E o pior é que o tal sujeito parecia ter tomado um banho de Leite de Rosas e já começava a suar! Para piorar a situação, já calamitosa, a composição ainda se encontrava
Tião e Osmar trabalhavam juntos em uma obra no Leblon. O primeiro morava em Queimados, o segundo, como já mencionado, residia em Japeri.
- Brother! Eu nem ligo mais em ter carro, já me basta conseguir um diazinho ir sentado de casa até à Central.
- Do que você me chamou Osmar?
- Brother... ah foi mal, isso significa irmão em “ingrês”.
- Ah bom... pensei que estivesse me xingando...
- Esquece!
E pensava: “Que merda de vida”
Ir sentado passou a ser a grande obsessão de Osmar desde então. E cada vez mais os vagões andavam lotados em seus destinos de ida e volta, do lar para o trabalho, do trabalho para casa, carregando aquelas almas cansadas e exaustas, e não bastasse um dia inteiro de trabalho árduo ainda sobrava a odisséia do chegar às suas residências.
Em outra viagem e com seu contínuo e esquizofrênico desejo de se sentar, Osmar fitava todos os bancos à procura de um cantinho em que pudesse se jogar e tirar um cochilo até seu destino final. Estava ficando louco, passou a odiar os homens que cediam seus lugares às mulheres mais idosas, não podia ver uma grávida que já tecia pensamentos para que o rebento em sua barriga nascesse com uma bunda bem grande, já que mãe e o filho, por nascer, lhe roubavam o acento. Tossia intempéries para as crianças que lhe tomavam o lugar onde poderia pousar as costas cansadas.
E sempre pensava: “Que merda de vida”.
Um belo dia, em mais uma fatídica volta para o lar, Tião e Osmar entraram em um vagão, obviamente lotado. Mas nesse dia o trem estava especialmente cheio. Era Dezembro e um forte calor fazia no Rio de Janeiro, o odor de suor misturado com perfume barato fazia com que Osmar se sentisse entorpecido, ainda mais ele, que se zelava tão perfumado e cheiroso.
Porém aquele dia guardava uma surpresa para Osmar. Em uma de suas cotidianas lamentações com seu amigo Tião, Osmar avistou algo que pensou ser uma alucinação. Um lugar vazio tilintava mais a frente, na parte que liga os vagões.
- Cê tá vendo o que eu tô vendo Tião?
- Não? O que é?
- Lá, perto do borrachão, tem um lugar vazio, olha, olha!
- Mais não é que tá mesmo...
- Não acredito, deve ser uma miragem, não pode ser e olha que o trem está muito lotado hoje!
- É mesmo, muito estranho – suspirou Tião.
- É minha chance – disse Osmar – Olha Tião, tem uma mulher já de olho no lugar vazio, ah não, esse é meu!
E como um louco enlouquecido (com toda a força da redundância) Osmar pulou sobre outros passageiros e quase que escalando-os, pisando nas cabeças alheias, empurrando as senhoras, sendo xingado, quase apanhando, no auge de seu surto psicótico, dá um último pulo e grita: - Consegui!
Porém ao acabar de sentar seus glúteos naquele oásis no deserto, Osmar sente algo viscoso em suas nádegas, e quando passa a mão para verificar do que se tratava, vem o golpe fatal. Osmar tinha sentado em um banco sujo de merda, um belo de um côco, um tijolo marrom, uma posta de bosta provavelmente largada por um mendigo que dormira no trem pela madrugada.
Então Osmar foi da Central até Japeri sentado e mais uma vez pensou: “Que... !”
Essa história foi contada ao meu pai por um amigo e que tinha conhecido um colega de Tião, que era amigo de Osmar, e hoje eu conto essa história pra vocês.
Até a próxima.



Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Possui o espaço literário "Palavras, Películas e Cidades" na plataforma Obvious Lounge. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Lançou em 2015, pela Editora Kazuá, seu segundo livro de poesias: (in)contidos. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.