tortura
avareza
Fora criado sem os pais.
Viveu sob as maiores privações.
Crescera em um orfanato.
Sempre fora calado.
Quieto.
Tímido.
Desenvolveu uma defesa infalível, para ele, e contestável, para todas as outras pessoas.
Tinha a absoluta certeza de que a melhor saída contra as agruras do mundo era:
O egoísmo! O mundo e as coisas tinham que ser suas, só suas, e de mais ninguém.
O egocentrismo e a autopiedade também faziam parte de seu armário, quase sempre vazio, de sentimentos.
Não tinha amigos.
Não tinha irmãos.
Não tinha pretensões.
Não tinha amores.
Só havia rancores.
A única coisa que restou, ao que parece, fora um lápis.
Somente um lápis.
Uma vez a diretora do orfanato contou que a pessoa que havia lhe trazido àquele lugar, anonimamente, dissera que o único presente que sua mãe tinha deixado em vida, era um lápis.
Lápis capeado de preto, e ponta de grafite comum. Só. Somente.
O único sentimento bom que detinha era algum gosto para a escrita. Escrevia, escrevia sempre, escrevia errado, escrevia mal, escrevia mau, mas escrevia. Desenhava suas letras tortas e derramava seus erros gramaticais em qualquer superfície. Era o seu único elo com o mundo. Sua oferta.
No resto...
Fechava as mãos nos bolsos.
Fechava o peito nos botões.
Fechava o olhar nos cílios.
Fechava o coração na garganta, seca.
E fecha este texto agora, porque não quer mais gastar seu lápis.
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.
O autor
Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Possui o espaço literário "Palavras, Películas e Cidades" na plataforma Obvious Lounge. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Lançou em 2015, pela Editora Kazuá, seu segundo livro de poesias: (in)contidos. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.
Contato
O email do blog: vinicius.fsilva@gmail.com
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Um comentário:
Vinicius, sem dúdida nenhuma você escreve contos muito bem! Estou encantada com todos que estou lendo. Mas esse, em especial, está precioso! Simples, direto, mas muito forte e preciso nas imagens e pequenas frases. A idéia do lápis é ótima e a frase que a explica" Sua oferta" é perfeita.
"No resto...
Fechava as mãos nos bolsos.
Fechava o peito nos botões.
Fechava o olhar nos cílios."
lindíssimo!!!! Arrazou nessa avareza! Achei tocante, de verdade!
Um conto triste, amargurado, se olharmos do ponto de vista do personagem, mas cheio de poesia e beleza!
beijos generosos,
e continue escrevendo com seu lápis...
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