Boyhood – da infância à juventude
(EUA, 2014).
Por Samantha Brasil
29/11/2014
Imagine um filme que demore 12
anos para ser rodado, no qual o diretor acompanha a rotina diária de uma
“família”, no qual a gente percebe as mudanças físicas dos personagens, as
roupas de cada ano, as músicas mais famosas de cada época, estilos e trejeitos
de falar, gírias, jogos, aparelhos eletrônicos, carros da moda. Esse projeto
fantástico de falar da simples rotina diária de uma família comum foi lançado
esse ano por Richard Linklater, que inclusive levou o prêmio de melhor direção
no Festival de Berlim. Mas não era de se surpreender que um projeto original
desse porte viesse justamente de Linklater. Afinal ele ficou famoso por
dirigir a trilogia composta pelos filmes “Antes do amanhecer” (1995), “Antes do
por-do-sol” (2004) e “Antes da meia-noite” (2013) que também acompanha as três
fases de um casal interpretado pelos mesmos atores (Ethan Hawke e Julie Delpy).
Ou seja, o diretor gosta desse desafio de lançar grandes projetos que se
perpetuam no tempo. E nós só temos a ganhar, já que a riqueza dos detalhes e
das delicadezas em que as relações micro se formam para dar conta de um
universo macro nos faz pensar e refletir não só sobre uma família em
particular, mas sim na própria transformação social de uma década.
“Boyhood” (no original) é um dos
filmes mais esperados nas indicações para o Oscar de 2015, podendo ser indicado
nas categorias de melhor filme, direção, roteiro original, ator e atriz
coadjuvantes (para Ethan Hawke e Patricia Arquette, que interpretam pai e mãe
do protagonista). A película é vista pelos olhos do menino Mason Jr.,
interpretado por Ellar Coltrane, que vive as agruras da mudança da
infância para a adolescência (um dos momentos mais ricos, tensos, densos e
desconfortáveis da vida de um ser humano). Nessa empreitada ele se soma à sua
irmã Samantha, personificada pela própria filha do diretor: Lorelei Linklater. Vemos
ambos crescendo, envelhecendo, mudando os cabelos, o estilo de se vestir, o
modo de falar, o timbre da voz, as espinhas, a descoberta do primeiro amor. Hawke
e Arquette são os pais dessa dupla e que vivem em um casamento que não dá
certo. Nessa jornada da infância à juventude, como sugere o subtítulo que
ganhou em terras brasilis, vemos um
casal que se separa, a mudança de colégio das crianças, problemas financeiros,
o novo parceiro da mãe que chega nessa família meio desestruturada com mais
dois filhos, um pai ausente que só aparece para entreter e não para educar.
Podemos então estar nos perguntando:
o que tem de tão interessante e que faz este filme ser um marco no cinema mundial, já que ele conta uma história tão comum, tão banal? A genialidade está na forma, na estética, na
ousadia, no roteiro inventivo e constantemente mutável para se adequar às
transformações sócio-culturais. Mas não somente nisso. Está também no conteúdo,
pois muitas vezes é mais difícil contarmos uma trama simples, sem deixá-la
parecendo “mais do mesmo” e enfadonha. Projeto semelhante, todavia menos
grandiloquente, foi o de Michael Winterbottom ao filmar por cinco anos o longa
inglês “Todos os dias” (2012). Porém, diferente deste aqui, tal diretor
relata um caso específico. Mostra como uma família lidou com o fato do pai
estar preso cumprindo pena por um crime cometido. Já Linklater consegue prender
o espectador ao longo de quase três horas de projeção para falar sobre dia a
dia, cotidiano, ou seja, nenhum tema em especial. Quando o filme acaba nos
sentimos meio órfãos, querendo saber mais da vida de Mason Jr. e sua família.
Se ele se forma, se seu encontro com a namoradinha dá certo, como está seguindo
sua vida, como está sua aparência. Tornamo-nos meio que personagens ocultos do
filme que se passa numa época recente em que todos vivemos. Impossível não se
emocionar e se identificar com as diversas referências de gostos, hábitos,
costumes da década passada.
“Boyhood” apesar de datado é um filme atemporal no
sentido em que marcará esta década numa experiência quase “documental” do
diretor que pretende imprimir uma marca autoral na história do cinema. A
vontade de Linklater nos convencer é tão realista que a gente acaba se deixando
levar por aquela família como se ela de fato existisse. Um trabalho realmente
primoroso e engajado não só do diretor, mas de todo o elenco. Aliado ao que já
foi dito, some-se a tudo isso uma trilha sonora espetacular que marcou as fases
pelo qual o filme perpassa de forma a se tornar quase um personagem. É um filme
de total imersão que nos faz reviver a nossa própria infância e juventude, com
o perdão do trocadilho em relação ao nome "brasileiro" do filme.
Nota: ♥ ♥ ♥ ♥ ♥
Obs.: A escala de corações vai de coração vazio (em branco) até cinco!
Samantha Brasil foi criada na Ilha do Governador, insular espaço fincado na Zona Norte do Rio de Janeiro, permeada entre a Baía da Guanabara, o Aeroporto do Galeão e a Ilha do Fundão. Fez Ciências Sociais na UFRJ, mas decidiu também fazer Direito. Hoje é funcionária do TJ-RJ. O cinema foi surgindo em sua vida como gosto, até atingir o ápice de vício. Médicos dizem que hoje não há mais cura, então sua única saída será ver mais e mais filmes, além de viajar em busca de Mostras e Festivais de cinema. Agora também escreve sobre esta maravilhosa arte, porque vício é assim mesmo.
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