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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Pequena história de mim mesmo




Sim, agora está claro, claro. Fui educado para obedecer. De certa forma todos somos. Mas por algumas posições e contextos da vida, somos direcionados para obedecer ou questionar. Desde minha tenra idade fui projetado para a primeira opção. Explico.

Meu ensino fundamental foi todo em escolas particulares, particulares e com filosofias militares e positivistas. Desde pequeno estudei em uma tradicional escola de Nova Iguaçu, minha cidade de nascimento, escola chamada Instituto Iguaçuano de Ensino. Esta escola foi fundada na década de 1940, por um casal de professores, tendo como doutrina a chamada "escola tradicional", de forte influência positivista e militar. Fui matriculado nesta escola por três razões: meu pai estudou um ano nesta escola; era considerada uma "boa" escola para disciplinar crianças e também pelo ensino; era acessível economicamente para a classe média baixa. 

Rapidamente me adaptei à escola, por alguns motivos. Sempre procurei ser querido pelos meus pais, e ser querido significava ser bom aluno e obediente. Além disso sempre me foi estimulada uma competitividade para que eu fosse o "primeiro lugar", o melhor aluno da escola. E durante muito tempo persegui essa meta, e alguns anos depois... consegui, me tornei o melhor aluno de toda a escola, com as melhores notas. Não acredita? Procure os arquivos e peça para ver meu histórico. Mas isto não era realmente nenhuma façanha. Descobri que a escola era fraca e que eu não era nenhum gênio. Quando saí de lá, minhas notas também mudaram, obviamente.

O segundo, e talvez o mais importante motivo de minha adaptação, é que aprendi a obedecer. Sim, eu tinha medo. O Iguaçuano, como é popularmente conhecido, tinha uma pedagogia do medo, onde os alunos morriam de pavor dos inspetores e do "corretivo", que era ficar depois da aula fazendo exercícios, tomando esporro, sem comer e com um belo carimbo vermelho em sua caderneta. Eu cagava de medo em tomar um "corretivo" na caderneta. Isto seria inaceitável para um aluno como eu, seria um fracasso, uma derrota. Os alunos também eram obrigados a usar cabelos curtos e os inspetores eram os encarregados de "checar" os cabelos na entrada, "cabelo grande, volta pra casa". Quem julgava isso? Oras, os inspetores. Uma vez tive meu cabelo puxado por um dos inspetores, cheguei em casa e reclamei, minha mãe não gostou muito, mas efetivamente, nada aconteceu. Criei até uma estratégia para não ter mais tanto medo: Virei amigo de um inspetor! Lembro de seu nome até hoje... Samuel! Samuel era uma cara legal, gostava dele. Obviamente que eu era odiado na escola. Era nerd, medroso e... pelego. No meu último ano no Iguaçuano eu tomei um... corretivo! Obviamente que fiquei horrorizado, meu mundo havia caído, alguns inspetores ficaram assustados ao me verem na sala do... corretivo. Mas algo também estava acontecendo... Eu não gostava mais daquele ambiente, não gostava dos inspetores (Samuel não trabalhava mais lá), não gostava dos professores, não gostava do ensino, não gostava da direção, e no fundo, no fundo... Adorei ter tomado aquele corretivo. Enfim, eu odiava aquela escola.

Ao mesmo tempo minha família sabia que eu era bom aluno e que tinha "potencial". Um parente mais velho e preocupado com meu futuro andara conversando com meus pais dizendo que eu precisava de uma escola melhor, que me desenvolvesse mais. Estava claro que esta escola seria necessariamente mais cara, e que meu pai teria que gastar uma boa grana para poder pagá-la. Ele não tinha muita grana, mas pagou. E além disso a tal escola dava descontos de acordo com o desempenho do aluno, então pagar menos mensalidade também seria uma responsabilidade minha. Tudo bem, eu me garantia... pelo menos achava. Não existiam muitas opções em Nova Iguaçu, mas na mesma época em que estava saindo do Iguaçuano, surgiu uma nova escola na cidade, uma escola com uma proposta pedagógica libertária... mas ela era muito muito cara e eu fui parar no Colégio Curso... Tamandaré! Sim, um curso preparatório e escola que tinha o nome de um herói nacional... o patrono da Marinha brasileira!  

O Tamandaré, como era chamado, era um curso preparatório que também formava para o antigo primeiro grau, e que tinha como grande meta preparar alunos para serem aprovados em concursos... militares. Sim, a grande honra para esse curso era que seus alunos passassem em boas colocações para o Colégio Naval, situado em Angra dos Reis, na costa verde do estado do Rio de Janeiro, e para os mais velhos a Escola Naval, sediada no centro da cidade do Rio. 

Minha adaptação ao Tamandaré não foi tão fácil, a competitividade estava presente e era altamente estimulada, mas os conteúdos e a exigência eram muito maiores. Não consegui me tornar o zero-hum, como sempre gostei de ser, o máximo que consegui foi ser o zero-dois da turma, mas isso já era o suficiente para que o valor das mensalidades já fosse amenizado. Em um bimestre em fiquei em décimo primeiro lugar, e obviamente que fui cobrado por isso. Em determinado momento sofri bullying durante o curso, o motivo eu nem me lembro, só sei que o segundo semestre foi infernal. Tinha poucos amigos e descobri algo terrível, terrível... eu não queria ser militar!

E porque eu não queria ser militar? Disso eu lembro até hoje. O Tamandaré promovia anualmente visitas ao Colégio Naval, em Angra, e em fui em uma dessas excursões no longínquo 1993. A viagem foi de ônibus e lembro que foi prazerosa. Mas quando cheguei e entrei na base militar, que na verdade era o colégio, algo me fez mal, muito mal. Naquele lugar, sem saber o por quê, senti o cheiro da morte, sério, de verdade. Ouvi histórias sobre os trotes, sobre a necessidade de se constituir como um jovem que sofreria violência gratuita e que teria que cometer violência gratuita para poder ser considerado um homem.  Posteriormente soube que jovens já haviam morrido na dependência do colégio, e que haviam suspeitas que talvez as mortes estivessem relacionadas aos trotes. Se não me engano já havia ocorrido suicídios. Aquele lugar seria a morte de meu espírito, da minha alma.

Avisei aos meus pais não queria ir para lá, que não queria ser militar. Lembro de um certo desapontamento, de uma certa decepção, mas eles aceitaram a minha decisão. Fiz a primeira fase da prova para o Colégio Naval no Maracanã (o de verdade, não esse falso e babilônico atual) nas arquibancadas de pedra, sem jeito, em uma prancheta que mal dava para apoiar a prova e o lápis. Fiz a prova para não passar. Não passei. Mas afinal, e agora, o que fazer? Então surgiu uma outra opção, uma opção que era quase uma vergonha para os diretores e alguns professores do Tamandaré, a opção se chamava CEFET - Centro Federal de Ensino Tecnológico Celso Suckow da Fonseca. Eu passei para o CEFET. Não me lembro a colocação, mas sei que não foi nada de excepcional. Tinha escolhido como primeira opção o curso de Eletrônica, mas fui aprovado para o curso de Construção Civil, mas não importava, o importante é que havia passado. E que lembrança... Lembro de meu avô Tuninho em casa, vibrando ao saber que meu nome estava no jornal e que eu estava aprovado. Todos nós comemoramos, eu, minha mãe e meu querido avô querido. O CEFET salvou minha vida.

Realizar a jornada urbana de Mesquita a São Cristóvão apresentou-me definitivamente à vida. Mostrou-me quem eu era. Viajar nos trens da Central do Brasil, pelo ramal de Japeri, mostrou a realidade de meus iguais, das pessoas que vivem na Baixada e que precisam se deslocar cotidianamente para ganhar a vida no Rio de Janeiro. Os trens da Central fizeram-me experimentar toda a penúria, o desrespeito, a ineficiência, o esquecimento do poder público em relação à forma pela qual os serviços públicos são oferecidos aos mais pobres. Ao mesmo tempo pude vivenciar que, apesar de tudo, ainda havia uma dignidade presente a quem só quer viver em paz, com os rostos cansados que batem com as cabeças nas janelas ou quase despencam dos bancos duros, dos homens e mulheres esquálidos e encardidos que carregam seus produtos pesados em suas costas, e ainda têm que fugir e serem roubados por seguranças de concessionárias que exploram este modal. Mas ainda havia um sorriso, os grupos de pagode, os jogadores de sueca, os maconheiros, os crentes, os surfistas, ainda havia o povo.

O CEFET também apresentou meus amigos da vida, pessoas que surgiram nas aventuras nas minhocas de metal e permaneceram, e permanecem até hoje, pessoas importantes em suas diferenças e semelhanças em relação a mim, que me ensinam a cada dia, que chamam a minha atenção, que me colocam no chão de vez em quando. Pessoas que se não existissem provavelmente me fariam ser uma outra pessoa e por enquanto gosto da pessoa que me tornei, apesar dos inúmeros defeitos.

E depois vieram as ciências sociais, a graduação, a UFRJ, as ideias de grandes pensadores mundiais, os trabalhos, os empregos, os colegas de trabalho, o mestrado, doutorado... Surge uma menina, que irá se transformar em namorada, noiva, esposa. Nasce um menino que se torna sobrinho, mas que no meu coração é filho. E entro nos "trinta", passo dos "trinta" e a vida segue seus passos velozes e imprevisíveis.

E olhando para esta pequena jornada, vejo que não há raiva ou grandes arrependimentos. Mágoas sempre existirão, mas as rugas no rosto sempre as amenizam. Não há raiva de minha antiga escola, apesar de seus erros, pois foi lá que foi forjado em mim a importância da disciplina e do medo. O medo é substância fundamental para que possamos nos manter vivos e sãos. Não há raiva pelo conservadorismo de meus pais, pois compreendo os medos e necessidades em se viver uma juventude pautada em uma ditadura, onde se expor ou expor uma opinião poderia ser a diferença entre a vida e a morte, ainda mais para pobres da Baixada Fluminense e sem "sobrenomes" importantes. Compreendo a proteção exacerbada ao sempre se dizer que expor uma opinião, ainda mais se ela for contra o senso comum generalizado, sempre será perigoso e contraproducente. Compreendo e agradeço por me formarem uma pessoa que possui um senso de justiça e ética. Compreendo... mas não me rendo mais a esse medo de se expor, de se colocar.

As pequenas conquistas de minha vida me permitem agora subverter o medo de minha mãe, que sempre diz que "é melhor um covarde vivo do que um corajoso morto". Não. Não! O covarde já está morto, já vive morto. Vive uma morte-vida contínua. Coragem não significa violência. Coragem significa não se render, não se conformar. E eu digo: eu não me conformo mais! Não me conformo com o país em que vivo. Não me conformo com o Estado que temos. Não me conformo com a polícia que temos. Não me conformo com a educação pública que temos... ou não temos. E essa não conformidade revela-se na afirmação de que desobedeço. Que desobedecerei caso seja necessário, caso isso leve a uma injustiça ou imoralidade, mesmo que uma legalidade seja afirmada. Por isso meu futuro talvez seja a cadeia, assim como um Thoreau solitário, mas se eu for preso em algum momento, saibam que foi por algo em que acredito ser piamente justo, justo para mim, para os outros, para todos. Desobedecerei todas as vezes que achar necessário. Gritarei todas as vozes de minha garganta, em todas as ruas que puder andar, caminhar, correr. Bradarei aos meus fantasmas do passado que rompi a prisão de culpas e medos e que agora desobedecerei, e que nem a morte vai me assustar, porque nascemos para morrer.

Digo que fui educado para obedecer.
Que cresci para me libertar.
E que morrerei se não puder gritar.

Porque todo covarde vivo, jaz uma vida à toa. 
E posso ser tudo, ter todos os erros e ser acusado de todos os crimes.
Mas espero que a covardia nunca esteja no rol
Das minhas lembranças.

Desobedeçam!



Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.

Um comentário:

João Lossio disse...

Muito bonito, meu amigo. Saudades!

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O autor

Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Possui o espaço literário "Palavras, Películas e Cidades" na plataforma Obvious Lounge. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Lançou em 2015, pela Editora Kazuá, seu segundo livro de poesias: (in)contidos. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.

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